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Os Anjos e a Velhaca da Joana Marques

  • Foto do escritor: Dr. João De Sousa
    Dr. João De Sousa
  • há 1 dia
  • 4 min de leitura
Créditos: Nuno Botelho
Créditos: Nuno Botelho

João De Sousa.    Consultor Forense
João De Sousa. Consultor Forense

Sentei-me a observar a coreografia completa deste julgamento-espectáculo: os jornalistas, de olhos fixos nos portáteis, teclavam com furor quase vingativo, como se cada pancada nas teclas pudesse arrancar uma confissão ao processo.




A ré Joana Marques e a sua comitiva, entre a pose de irreverência e o nervosismo contido; os Anjos, alinhados com a solenidade de um dueto em véspera de gala e a sua claque - sim, havia claque - que aplaudia com o olhar cada lágrima bem colocada e cada tremor vocal emitido pelas testemunhas.


Joana Marques e os Seus
Joana Marques e os Seus

Foi o dia reservado às vozes da defesa dos Anjos e não faltou emoção, comoção, algo que de tão genuíno até nos poderia levar a crer ter sido muito bem ensaiado.


A Juíza, por sua vez, parecia não apenas compreender o sofrimento evocado, parecia senti-lo. Cada lágrima que arriscava brotar à sua frente, parecia bater-lhe no íntimo da negra beca.


Já o sistema de videoconferência do Tribunal revelou-se digno de uma paródia involuntária: imagem congelada em expressões duvidosas, som aos soluços e uma sincronização tão desastrosa que faria corar um estagiário de pós-produção.


A tudo isto somavam-se os aviões que, com pontualidade militar, sobrevoavam o tribunal sempre que alguém tentava dizer algo de, supostamente, relevante.


Em várias ocasiões, particularmente insólito, foi Nelson Rosado quem tomou as rédeas da sessão, substituindo-se informalmente à Juíza, pedindo que a testemunha aguardasse porque “está a passar um avião”.


O Tribunal não conseguia garantir o silêncio, mas os Anjos tentavam assegurar a escuta. Justiça acústica, ao menos.


O Maestro Feist, habituado a harmonias e composições rigorosas, viu-se mergulhado num caos sonoro: som falhado, imagem congelada e aviões a cortar o áudio com a precisão de uma orquestra desafinada.


Franzia a testa com a solenidade de quem ouve uma nota fora da pauta.

Muito mais séria foi a forma como apresentou a conclusão do seu parecer: “Sou assim da opinião que em momento algum o Hino Nacional foi adulterado melodicamente ou ritmicamente.”


Uma opinião, apenas, mas servida com o verniz de parecer técnico, como se o gosto musical pudesse ser auditado. Com isto, os Anjos não quiseram apenas defender-se: quiseram regulamentar o gosto.


Transformar sensibilidade em norma e reprovar, com selo de autoridade ofertado por Maestro, quem ousa não gostar da sua versão do Hino Nacional. Feito.


Se a Justiça fosse cega, talvez não tivesse notado as expressões, os risos, os olhares cúmplices e os silêncios ruidosos que preencheram aquela sala abafada.


Mas não. A Justiça vê. Regista.


E, se a Justiça fosse minimamente sensível ao teatro do absurdo, teria interrompido o acto e devolvido os protagonistas ao palco onde realmente brilham: a televisão e o entretenimento.


O palco judicial, diga-se, estava montado com todos os ingredientes de um drama contemporâneo: lágrimas sentidas (ou ensaiadas e interpretadas), testemunhas emocionadas, empresários ofendidos, técnicos ofuscados e peritos melódicos.


De um dos lados, a ré mais peculiar dos últimos tempos: Joana Marques, humorista, podcaster, cronista ou, para efeitos do processo, algo entre uma bruxa digital e um míssil de sarcasmo.

Joana não é o pequeno animal assustado. É um ser afiado, de ironia fria e acutilante, que destila sarcasmo como quem respira.


Não é ruidosa, é letal e tem aquele tipo de humor que atravessa todas as camadas até deixar o alvo exposto, não num grito, mas num sussurro desconcertante.


Estou sinceramente convicto de que é parente afastada de Ricky Gervais: partilham o mesmo ADN humorístico corrosivo e a mesma incapacidade de levar a seriedade demasiado a sério.


O único problema da Joana Marques é que, ao contrário de Gervais, ela nasceu em Portugal.


Mas, numa análise mais forense, Joana falhou hoje. Não no conteúdo, mas na postura.

Ainda não domina completamente a sua veia satírica fora do estúdio quando é obrigada a estar presente num ecossistema estranho: a sala de um Tribunal no papel de Ré.


Num tribunal, onde cada gesto é observado, cada suspiro interpretado, cada esgar anotado, é preciso mais contenção.


A porta da Sala de Audiência ou o Caixão para o Humor?
A porta da Sala de Audiência ou o Caixão para o Humor?

A Juíza vê. O Oficial de Justiça vê e relata (à Juiz). A audiência vê. Os jornalistas anotam. Neste palco não há bastidores e se a ré quis manter a pose irreverente mantendo-se fiel à sua persona pública, talvez se tenha esquecido que a cena e o acto eram outros e os Anjos e a sua defesa estiveram a trabalhar muito bem... a emoção.


As testemunhas dos Anjos – maestros, músicos, técnicos, esposas, amigos, empresários - desfiaram relatos sobre dor, angústia, reputações magoadas, filhos a sofrer, noites sem dormir e até olhos rebentados de tensão e crises de acne.


Houve quem chorasse, quem se engasgasse com as próprias palavras e quem descrevesse Joana como alguém que “adora humilhar pessoas”.


Os Anjos e os Seus
Os Anjos e os Seus

Um retrato que, podendo ser injusto, é eficaz para o efeito pretendido: comover, convencer, vencer.

Mas o humor não se regula por simpatia. Nem se dissolve em lágrimas. O humor é o incómodo. É o que belisca. É o que nos obriga a olhar para os ídolos com menos luz e mais sombra.


Sempre se gozou com os grandes: Elvis, quando engordou. Sinatra, quando se esquecia da letra.


O humor não é um elogio. É uma lupa distorcida e a Liberdade de Expressão não pode ser arrastada até ao banco dos réus sempre que toca em algo sagrado para alguém.


A dada altura, não pude deixar de imaginar um outro desfecho.

E se, em vez de uma queixa, os Anjos tivessem convidado Joana para uma rábula?

O que teria sido e o quanto se tinha evitado, se tivessem subido juntos ao palco e feito "O Julgamento do Ano: O Musical"?


Se em vez de lágrimas houvesse gargalhadas? Se, por uma vez, se tivesse percebido que o melhor antídoto para a sátira é.… mais sátira?


Talvez um dia.

Por agora, nesta sessão, restou-nos o espectáculo dos togados e a certeza de que, quando se começa a julgar o Humor, o que se perde não é só a graça, é a Liberdade.

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